Entre a euforia e a depressão : ocupações urbanas irregulares no sudeste do Pará, frente aos grandes projetos desenvolvimentistas da Amazônia 



por Camila Fialho e José Viana a partir do videodoc Terra pra Quem, com reflexões da professora Dra. Violeta Refkalefsky (em negrito)

vozes (em itálico) de Dona Maria, Marinete Lino, Noélia Dias, Linda Dourado, Chiquinho Alves, Irene dos Santos, Edivaldo Costa, Gersinda Rodrigues, Ilka Barros, Célia Vieira, Railton Paixão, Nilza Macedo, Hilário Costa, Índio, Raul Pereira, Dalva Barroso, Edenilza Correia, Deisiane Maciel, Adriene Gaia, Telma Correa, Valdirene Silva, José Ribamar, Almir Rodrigues, Keli do Palmares, Antônio Lima, Maria José da Silva, Andreia dos Santos, Assunção dos Santos, Cristina Rodrigues e Seu Sebastião



Estrada de ferro Carajás concedida à Vale S.A. Foto: Camila Fialho e José Viana.


No final de 2013, a Comissão Pastoral da Terra (CPT) nos convidou para realizar um documentário audiovisual de aproximadamente 20 minutos, sobre os bairros da Paz, em Marabá (PA), e Palmares, em Tucuruí (PA), dois casos emblemáticos de ocupações urbanas na região sudeste do Pará. Após as pesquisas preparatórias, era tempo de imergir no contexto de trabalho.

Abrimos os olhos já na região sudeste do Pará. A coloração avermelhada de terra remexida, os extensos campos de gado, ora em lembranças de floresta, ora retilíneos, entrecortados em fazendas de reflorestamento. Pinus e eucaliptos na Amazônia. O movimento é intenso pela malha rodoviária. Nas cidades, lojas de produtos e de equipamentos do agronegócio. Caminhonetes e motocicletas compõem o sonoro cenário. Linhas de ferro dão passagem ao maior trem de carga do mundo - de uso exclusivo da mineradora Vale S.A. -, que corta dois estados e mais de cem comunidades. Os bois vivos em caminhões de dois andares, aguardam o tanque encher.
(Extraído do diário de bordo, 16 de fevereiro de 2014)

Arquivos da CPT, recortes de jornal sobre as ocupações urbanas de Marabá e arredores. Batalha diária na vida de muitos. Conhecimento pouco das autoridades. Mandados de reintegração de posse. Execuções nos anos 2006. Em processos mais recentes, a polícia militar se nega a cumprir a decisão jurídica. O Bairro da Paz já comporta muita gente.
(...) Casa simples com grande pátio onde Dona Noélia cria galinhas junto aos gatos. Lá ficamos hospedados durante os seis dias. Pés de papaia, banana, jaca e manga. Mãe de 7 filhos, veio de Minas Gerias ainda menina em um pau de arara. A certeza dos cabelos brancos confiados ao senhor Deus pai e ao Papa. (...) Visita ao seu Antônio e sua esposa, dona Nilza. São moradores do bairro desde o início da ocupação. Panos coloridos cuidadosamente revestem as paredes da sala. Histórias do começo.
(Extraído do diário de bordo, 17 de fevereiro de 2014)

Na saída de Marabá a caminho de Tucuruí, entre caminhões e buracos na estrada, ainda com chuva, enxergamos uma grande siderúrgica em funcionamento. Em meio a um cenário de usinas desativadas, percebemos um misto de luzes e um intenso movimento entre fornos e carvão. Movimento de caminhões pela rotatória que liga o oeste, o sul e o sudeste do Pará. Na estrada, imensos latifúndios destinados à pecuária extensiva, entrecortados por linhões de transmissão de energia que abastecem parte da indústria brasileira. Um ruído vibrante e intenso da alta tensão sendo carregada continuamente país afora se propaga, desde os movimentos seculares dos rios. Campos de gado. Abastecer e reflorestar. Pinus pinus pinus. Uma floresta amazônica de pinus! Mais soja e mais gado.
(Extraído do diário de bordo, 24 de fevereiro de 2014)

Terra pra quem

Foram 15 dias de imersão. Queríamos mergulhar nas histórias e tentar construir um discurso polifônico, para além da nossa visão documentarista, externa à realidade. Durante as filmagens, ficamos albergados nos bairros, realizamos oficinas de vídeo com adolescentes e jovens adultos e rodas de conversa com lideranças e antigos moradores.


Bairros Da Paz e Palmares 

Percebemos uma relação muito próxima entre os dois bairros. A maioria dos moradores vem de outros estados, ambos trazem em sua memória violentas histórias de luta pela terra. Tanto um quanto o outro possuem mandatos de reintegração de posse em aberto, emitidos pela justiça local. Não possuem a documentação dos terrenos nos quais construíram suas casas. As populações que residem nestas localidades não têm acesso à água encanada nem esgoto, tampouco têm em suas proximidades creches ou escolas. O transporte coletivo exige deslocamentos até bairros vizinhos, e o asfalto é um sonho aguardado como esperança de novos tempos. Em época de eleições, os votos são facilmente manipulados com promessas básicas, renovadas a cada quatro anos.

Foi chegando gente, chegando gente, e fomos indo e fomos indo, e olha só como é que tá agora, muita gente.
Porque quando o juiz dá uma liminar para ser cumprida, ele não quer saber se quem está morando lá são pessoas carentes. Se vira! Ou a prefeitura paga ou sai todo mundo.

(Ilka Lima, Bairro da Paz, Marabá/PA)

Por que você já pensou como é a gente morar num lugar sem saber o que está fazendo? Sujeito a qualquer hora ser expulso, derrubar sua casinha, e que você não tem outra coisa.
(Gersina Rodrigues, Bairro da Paz, Marabá/PA)

Tem que lutar, né!? As pessoas têm que lutar pra não sair. Até porque a gente já andou sabendo por aí que a dona dessa terra nunca tirou ninguém porque ela não tem o título da terra.

(Irene de Sousa, Bairro da Paz, Marabá/PA)

Marabá, capital do que será o estado de Carajás quando o Pará for dividido

Marabá vive um momento de euforia. Por entre faixas de terra que conjugam aspectos urbanos e rurais, o Bairro da Paz, assim como outras ocupações urbanas espalhadas pela cidade, não para de crescer. Tal euforia está atrelada à implementação de grandes projetos industriais e de infraestrutura, que por sua vez, atraem inúmeras pessoas em busca de trabalho. São as obras de duplicação da Estrada de Ferro de Carajás, para triplicar a extração mineral na região; a derrubada do Pedral do Lourenção para instalação da hidrovia Araguaia-Tocantins, escoando a produção de grãos e minério produzidas no centro do país, a construção da Hidrelétrica de Marabá para abastecer as novas indústrias multinacionais, como é o caso da implantação da ALPA - Aços Laminados do Pará e da ampliação do Polo Siderúrgico de Marabá.

Eu tinha onze anos. E a gente fez a travessia do barco. O barco vinha cheio, cheio. E eu sentada bem assim. E a água, como dizia a história, vinha lambendo. Meu pai gritava “êta, hoje vai todo mundo pro pirão, ser frito”. Nesse barco, ninguém podia nem se mexer, na travessia, de noite. E eu morria de medo. Todo mundo que tava dentro do barco mal respirava para se mexer, porque o barco era lotado de gente indo pra aquela barragem.
Nós viemos 65 pessoas num pau de arara. Foram doze dias pra chegar aqui. Nós tínhamos duas terrinhas lá, mas aí chegou o compadre nosso, dizendo que no Pará era pra fazer dinheiro. Meu marido cresceu os olhos pra vir, deixamos tudo. No meio da estrada acabou o dinheiro de todo mundo, aí teve que repartir tudo. Chegamos aqui sem nadinha.

(Dona Noélia Dia, Bairro da Paz, Marabá/PA)  



Siderúrgica sobrevivente no Polo Siderúrgico de Marabá. Fotografia: José Viana.


Tucuruí, 40 anos depois da construção da Usina 

Em sentido oposto, Tucuruí vive uma espécie de declínio pós-implementação de um grande projeto. Depois de movimentar para a região inúmeras famílias e pessoas atrás de emprego, hoje tudo parece estagnado. As inúmeras placas de “vende-se” fixadas às fachadas das casas nos chamaram a atenção ao chegar à cidade, o que ficou ainda mais evidente quando percorremos o bairro Palmares.

Ali escutamos histórias de mulheres que vêem seus maridos a cada 3 meses, as “mulheres de barrageiros”, cujos filhos também foram embora para Parauapebas, Altamira, Marabá e Porto Velho - cidades onde estão sendo implementados outros grandes projetos. Enquanto isso, elas tentam vender suas casas, fruto de uma conquista que para muitas representam 40 anos de luta e investimento, desde o começo da construção da barragem.

Ironicamente, o deslocamento e a dedicação de tantos homens e mulheres em nome do progresso brasilerio, não garantiram o seu próprio bem-estar. Neste mesmo Palmares, de onde se pode ver a quarta maior hidrelétrica do mundo desde as partes mais altas do bairro, ouvimos relatos sobre a precariedade da distribuição de água e de energia para a população, o que todos reconhecem não ser um privilégio da ocupação, mas de Tucuruí como um todo.



Hidrelétrica de Tucuruí. Fotografia: José Viana

Meu marido é barrageiro, aí nós viemos em uma caminhada boa, nós viemos pra Marabá, depois Goiás, depois Maranhão, fui pra Santa Catarina, e de lá retornamos pro Pará.
(...) 
Como diz o outro político, somos umas viúvas de marido vivo. Porque eu falo assim, que eu só recebo uma pensão, mas eu vejo meu marido só de três em três [meses]. Passam dez dias e ele já vai de volta. Então, é uma luta constante para tantas mães do bairro. Ele está em Altamira. Antes estava lá no Jirau, tava em Porto Velho. Aí, de lá, deu um tempinho em casa e voltou para Altamira. Vamos ver na próxima semana o que vai acontecer. Fomos criando os filhos praticamente só, porque um homem que só aparece de três em três meses… 
(
Assunção dos Santos, Bairro Palmares, Tucuruí/PA)

Emprego também tá difícil. O prefeito falou que depois que ele ganhasse as eleições ia ser um ano de mudanças. Realmente tá sendo um ano de mudanças, tá todo mundo se mudando para Parauapebas, Altamira. Os jovens estão todos indo trabalhar aí pra fora pra essas construções.
(Andreia dos Santos, Bairro Palmares, Tucuruí/PA)



Mais uma casa à venda no Bairro Palmares, em Tucuruí. Fotografia: Camila Fialho




Futuro em obras

Mesmo passados 40 anos desde o começo da implementação da hidrelétrica, a sensação que temos é que o exemplo de Tucuruí não desencadeou novos modos de proceder, tampouco parece ter despertado uma reflexão sobre como não incorrer nos mesmos erros, pelo menos não naqueles que detêm o poder de decisão. Na região Amazônica, o Programa de Aceleração do Crescimento parece traçar exatamente o mesmo caminho com a construção das usinas de Belo Monte, Jirau, Santo Antônio e, num futuro próximo, o Complexo do Tapajós.

A conivência do Estado brasileiro com relação a uma pauta amazônica integral, reafirma políticas públicas que atendem as demandas da macroeconomia global em detrimento das populações e ecossistemas locais.


Bairro Palmares, em Tucuruí/PA. Fotografia: José Viana.



Grandes projetos e o futuro incerto, por  Violeta Refkalefsky

O governo brasileiro aceitou de bom grado que essas indústrias se instalassem na Amazônia e fez mais – prometeu construir a infraestrutura necessária para que elas pudessem se instalar (aeroportos, estradas de rodagem e de ferro, vilas para funcionários, hospitais etc). Os estudos de ciência política não esclareceram até hoje porque o Brasil aceitou um negócio tão desvantajoso. Qualquer estudante de economia (nem precisa ser um dos melhores alunos), sabe que este tipo de empreendimento faz crescer o PIB, mas não internaliza benefícios porque tudo sai do país como produto semielaborado e não como produto acabado, industrializado.

O PIB não é um bom indicador de desenvolvimento e muito menos de bem-estar social. Como ele é a soma das riquezas produzidas, você pensa que a renda da população do Pará está crescendo; mas, o que está crescendo de fato, é a riqueza desses enclaves econômicos, já que o lucro delas ou vai para fora do país ou fica concentrado em algumas grandes empresas. Não é distribuído sob a forma de bons empregos e renda razoável entre as populações locais, como seria de se esperar se os produtos fossem industrializados aqui mesmo. O valor do que elas produzem gera divisas e colabora na balança comercial do país e isto é bom, mas não gera riqueza para o Pará nem para os demais estados amazônicos na mesma situação. E isto ocorre por várias razões. Uma delas decorre da chamada Lei Kandir, aprovada em 1996. As siderúrgicas já haviam sido dispensadas de pagar o Imposto Sobre Exportação; a lei Kandir veio acrescentar mais uma isenção: a cobrança de ICMS sobre produtos primários e semielaborados destinados à exportação. [...] O espírito da lei é tornar mais baratos e, portanto mais competitivos alguns produtos brasileiros como o ferro e o alumínio em lingote, mas isto acarretou durante anos um enorme prejuízo para os estados, que antes recolhiam para si esses impostos.


A hidroelétrica aqui é assim: é bonito, é muito bonito, um cartão postal. Agora pra nós moradores do Tucuruí mesmo, ela não tem muita coisa pra dar pra gente. A energia é muito cara, não é de boa qualidade. Todo mundo tem aparelho queimado por aí. Lá mesmo onde eu tenho minha terra, se faltar luz por exemplo na segunda-feira, você fica a semana inteira sem energia. O pessoal da companhia de energia não vai lá nem ver o que é. Tem um vizinho meu que queimou o transformador dele e ficou quase 1 ano sem energia.
(Valdirene Oliveira, bairro Palmares, Tucuruí/PA). 

Eu tive conversando com um gerente uma vez, por que no Maranhão que gasta mais posto, mais cabo e mais mão de obra, a energia do Maranhão, que vai daqui é mais barata que aqui, que praticamente a gente mora dentro da barragem, que gasta menos cabo, menos poste, menos mão de obra, ai ele disse que é o imposto do Pará, que nós somos obrigados a arcar com isso.
(José Ribamar, Bairro Palmares, Tucuruí/PA)

A Eletronorte gasta milhões e milhões sempre construindo subestação, mas pra que essa substação? Pra levar energia pra fora. Agora mesmo estão fazendo duas pra levar energia daqui pro Amazonas todo e pra fornecer parte desse pais vizinho, a Venezuela. Então pra isso eles fazem, porque eles vão ter muito lucro. Agora aqui não tem.
(Almir Rodrigues, Bairro Palmares, Tucuruí/PA)




Do ponto de vista social, a hidrelétrica de Tucuruí gerou problemas de várias ordens. Basta lembrar os dados censitários para se pode ter uma ideia disso. Em 1970, portanto antes da construção da hidrelétrica, a população do município era de 9.900 habitantes (em números arredondados).

A construção da hidrelétrica e das obras adicionais à usina, como hospital, escolas, alojamento para trabalhadores de empreiteiras, a vila que abriga os funcionários permanentes da usina, ruas, supermercados, estradas permanentes e de apoio à obra etc, atraíram migrantes de vários pontos do Brasil. A hidrelétrica começou a funcionar em 1984. Quando sai o Censo de 1991 todos tomam um susto: a população de Tucuruí era de 111.000 habitantes (em números redondos). A população havia se multiplicado por 10 em apenas 20 anos. Esses migrantes tinham ido para a região em busca de emprego e de uma vida melhor do que em seus lugares de origem; quando as obras foram concluídas, a maior parte dessa população de migrantes ficou desempregada. Vale lembrar que a década de 1980 foi a chamada “década perdida” - com inflação descontrolada, estagnação econômica e desemprego em todo o Brasil. E não adiantava migrar novamente porque noutras regiões, também, não havia emprego. Em Tucuruí não havia escolas, serviços de saúde, de segurança, coleta de lixo e outros serviços públicos para atender a todos. Era uma população que crescera de forma absurdamente rápida. E o governo federal não proporcionou nenhum apoio especial para esta população nova; o apoio era para as pessoas engajadas nas obras e para os funcionários da hidrelétrica, que habitavam a chamada “vila dos funcionários”.


Linhões de transmissão de energia cruzam o país para abastecer indústrias. Fotografia: Camila Fialho.

Além do desemprego e da precariedade de todos os serviços públicos havia dois outros problemas graves. Um deles era o dos remanejados da barragem. Eram milhares de pessoas que haviam sido desalojadas de suas terras, com suas famílias. Haviam perdido a terra, a casa e o trabalho e nunca chegaram a receber as indenizações devidas, nem tampouco o apoio que o governo federal prometera.

O outro era a situação dos índios Parakanã.


O Cabeça, coitado, foi o primeiro que foi. Depois foi a Sônia que foi embora, depois Seu Manoel, depois o Sivaldo.
(Dona Maria, Bairro da Paz, Marabá/PA)

Mas aqui esteve muito ruim. Eu mesmo via bala. Derrubavam um aqui, davam tiro em um ali. Fazia barraquinho de noite, amanhecia não tinha mais nem os paus.

No início do bairro teve várias coisas. Teve muita confusão, teve conflito, teve muito sangue derramado aqui dentro.

(Edivaldo da Silva, Bairro da Paz, Marabá/PA) 


Na verdade, os impactos sobre os Parakanã (do Tocantins) haviam começado no início dos anos 70, quando a Transamazônica atravessou suas terras e, em consequência, uma parte delas havia sido invadida por colonos nordestinos que buscavam terras na Amazônia. O governo remanejou os índios porém, para uma área menor que a anterior. Mas, a nova terra dos Parakanã foi parcialmente perdida na inundação do lago da hidrelétrica, o que obrigou o grupo a se transferir novamente e para uma área menor ainda. Some-se a isto o fato de ter ficado pendente a indenização a ser paga pela Eletronorte aos índios. Além do prejuízo de inundar um trecho da estrada recém-construída, a Transamazônica teve que mudar seu traçado para passar longe da área de inundação; e ao mudar seu traçado passou novamente por cima das terras para onde o governo tinha remanejado os índios Parakanã. Portanto, havia conflitos de várias ordens. Enfim, foi uma época de marasmo econômico, desorganização social, abuso de poder, violência, falta de planejamento e desrespeito aos direitos humanos. Dá para repetir ou foi suficiente para o Brasil aprender uma lição da história?

Lamentavelmente, Belo Monte vai no mesmo rumo, assim como as hidrelétricas que estão sendo construídas em outros estados amazônicos. Não é à toa que há 3 décadas se discute o destino da hidrelétrica de Belo Monte e se batalha nos tribunais tentando alterar o perfil da obra, a forma de construí-la ou a possibilidade de não fazê-la. Além disso, trata-se de uma hidrelétrica que vai ficar praticamente paralisada durante os vários meses de seca do rio Xingu. Não é possível que todos os cientistas que fizeram estudos aprofundados e discutiram os erros dos relatórios de impacto ambiental sejam loucos, radicais ou queiram, simplesmente, infernizar o poder central com seus estudos, enquanto as empreiteiras, os lobistas e alguns outros grupos de poder estejam certos.



Muitas famílias foram assentadas ali no Novo Repartimento, ali na Gleba Parakanã. Só que lá foi uma praga de mosquito tão grande, uma mutuquinha também chamada cabo verde, que as famílias não tinham sossego nem de dia nem de noite, com ataque dessas mutucas. Quer dizer, a maior parte das casas era cheia de telas, não podia deixar nenhuma brechinha na casa que enchia dessas pragas. Muita gente não aguentou, aí vinha e acampava aqui, no acampamento reivindicando uma outra terra, um outro lugar. Aí houve uma indenização de dinheiro pra cada um se virar do seu jeito. Muitos conseguiram ser indenizados e outros ainda lutam.
(Hilário Costa, Bairro Palmares, Tucuruí/PA)

E as pessoas que tiveram seus barracos e suas casas alagadas não receberam o dinheiro que era pra receber. Então muita gente hoje tá numa situação feia. Meu sogro morreu com 80 anos e não recebeu a indenização da Eletronorte. Meu sogro morava numa cidade que se chamava Remanção. Eles eram de lá, e quando o lago encheu e acabou tudo lá pra baixo, eles tiveram que vir pra cá na promessa de receber a indenização depois. Ele morreu há três anos e não recebeu nada.
(Valdirene Oliveira, Bairro Palmares, Tucuruí/PA) 


O que significa uma hidrelétrica que atende mais à economia do sudeste e do exterior e menos ao Pará? Trata-se, a meu ver, de um novo modelo colonial. Mais perverso do que o antigo sistema colonial porque, na época em que o Brasil era colônia de Portugal, nós brasileiros não havíamos escolhido esta condição. O neocolonialismo atual foi uma opção do país em desfavor da Amazônia, que fez do Pará uma colônia da qual a metrópole (o sudeste) se beneficia, o exterior se beneficia e o Pará fica a ver navios... e trens partindo com suas riquezas.

A Amazônia exporta energia para o resto do Brasil sem receber nada em troca (porque a Lei Kandir proíbe a cobrança de impostos pelo estado produtor), mas têm que arcar com enormes problemas ambientais e sociais, especialmente devido às migrações desordenadas que acorrem à Amazônia quando há alguma grande obra, mas que acabam ficando definitivamente na região.

Imagine como a Amazônia ficará em termos ambientais e sociais se as 23 hidrelétricas planejadas para a região forem mesmo construídas! Seis delas já estão em construção e onde elas estão sendo construídas a migração e a pobreza são enormes e os comprometimentos ambientais idem. Enfim, sem querer ser pessimista mas, se todas elas forem construídas podemos dizer que a Amazônia, o mais rico bioma do planeta terra ficará irremediavelmente comprometido. E finalmente, quando no centro-sul é verão e os reservatórios estão baixos, na Amazônia é o período das cheias e o reservatórios estão cheios mas, mesmo assim, os consumidores da região pagam tarifa vermelha. Em resumo: exportam de graça, assumem a desordem social e os prejuízos ambientais decorrentes das hidrelétricas e ainda pagam tarifa vermelha.

Carajás, barragens, a mineração... Todos esses grandes projetos estão conectados entre si e acabam desestruturando famílias, cidades... viram, desalojam, tiram todo mundo do seu habitat… [e as pessoas] se lançam em aventuras em busca de conseguir uma migalha, lá onde estão sendo implementados esses projetos. Quer dizer, um modelo que desestrutura tudo.

É verdade que o Brasil precisa de energia, mas há muitas formas de produzi-la. Em primeiro lugar, é possível gerar a mesma quantidade de energia com hidrelétricas muito menores e não mais com mega construções. Isto seria mais aconselhável e mais compatível com o perfil dos rios amazônicos, devido à falta de declividade dos nossos rios. (Como nossos rios são planos, os lagos de retenção de água têm que ser gigantescos, com enorme desperdício de terras, biodiversidade e milhares de pessoas sendo removidas das áreas afetadas; são pessoas que saem do interior e vêm morar pobremente nas periferias urbanas). Por que não se valer de outras formas de energia que já se mostraram adequadas? A exemplo, a cidade de Osório, no Rio Grande do Sul, que não é tão pequena (tem 400 mil habitantes), recebe energia de 75 torres com turbinas movidas a vento. Os planejadores também se esquecem do gás natural. Mas, o Brasil é o país do desperdício e a história tem mostrado que os planejadores brasileiros e as construtoras não gostam e nem aprovam ideias simples. Enfim, os que combatem a hidrelétrica de Belo Monte não são simplesmente do contra, nem estão querendo deixar os rios da Amazônia fora da matriz de energia. São contrários à megalomania da sociedade brasileira, à falta de planejamento e em favor do respeito aos direitos humanos das comunidades das áreas atingidas que, por serem pobres ou terem cultura diferente da nossa são menosprezadas pelos planejadores, como se fossem menos brasileiros que os demais.


texto publicado no jornal Nossa Voz
disponível em:
https://issuu.com/casadopovo/docs/_________nv_05_grafica_final_bx