Todas as águas
_ artista: Véronique Isabelle e convidados _ curadoria: Camila Fialho
_ Associação Fotoativa, agosto de 2018
Todas as Águas condensa os estudos de doutorado em Antropologia desenvolvidos por Véronique Isabelle na Universidade Federal do Pará, sua pesquisa de campo na comunidade de Jamaci, uma das ilhas de Belém, e traz para a superfície das formas a magia dos encontros afetivos que fez e das relações que teceu ao longo de quatro anos de trabalho.
Na semi-escuridão da primeira sala, há uma foto de um quadro pintado por sua avó, mostrando a artista e seu pai em uma canoa no Lago Auclair, em Quebec. A imagem-semente de uma canoa puxa o fio de memórias borradas, de narrativas reinterpretadas que muitas vezes são fabricadas e assumem novas texturas. No chão, a obra Olho d'água nos convida a entrar em águas profundas - as do subconsciente do artista - e as nossas próprias. Uma bacia de água com fotografias desgastadas e desbotadas sobrepõe as camadas de um tempo distante. Nelas, imagens das pinturas que a artista fez sem se lembrar daquela que foi feita por sua avó. Como eventos passados que se transformam em memórias desbotadas de anos distantes, as fotos perdem a cor e desaparecem.
No mesmo ambiente, sobre a mesa, uma luz fraca ilumina fotos e anotações do trabalho de campo num jogo de sobreposição de memórias de ontem e hoje. Uma prévia da atmosfera que se segue no espaço da exposição que um dia já foi a casa de alguém.
A segunda sala abriga a obra de Débora Flor. Sem delimitar o que é o começo e o que é o fim, a artista cria uma narrativa no livro-sanfona que serpenteia sobre a mesa. Nele, uma compilação de registros de trabalho de campo feitos pelas lentes da artista-fotógrafa que acompanhou a pesquisa de Isabelle. As imagens, reelaboradas e impressas em marrom van-dyke (1), borram o tempo não cronológico, deixando que o olhar do espectador recoloque os fatos na temporalidade de um imaginário possível que conjuga no presente um passado não distante. Nas paredes, retratos de pequeno formato criam a atmosfera de uma experiência que já parece distante.
A sala adjacente abriga uma luminária feita de matapis (2) doada por pescadores da comunidade de Jamaci. Ela marca uma transição entre os mundos. A parede pintada com lama coletada do fundo do rio delineia o cenário para o novo repertório narrativo, composto por muitas vozes. A pequena sala adjacente abriga uma instalação sonora que nos convida a deitar em um tapete de retalhos colocado no chão. Feito pelas mãos da Sra. Ocimei Souza Rodrigues, moradora da ilha de Jamaci, a textura dos nós também liga as histórias que ecoam do chão. A cortina de voile semitransparente apresenta dois mapas feitos a muitas mãos junto com a comunidade. Neles estão localizadas as origens das narrativas da paisagem sonora (3) que ambienta a instalação. De um lado, em positivo, o mundo dos homens que narram. De outro, em negativo, o mundo do encantado sobre o qual os homens narram.
Flor d'água é o nome local do fio-espelho d'água que conecta o mundo da superfície - o dos homens - com o mundo das profundezas, o dos encantados que vivem submersos no rio. Flor d'água (4) é também o nome dado à canoa construída por Véronique Isabelle em colaboração com Eder Ribeiro Campos, morador de Jamaci que também recebeu a artista em sua casa durante sua pesquisa de campo na comunidade. Suspensa no meio da grande sala, ela também suspende nossa imaginação, imergindo-nos no mundo onírico do encantamento. Colocando nosso devaneio em movimento ao lado do barco, a pintura a óleo nos convida a deslizar sobre as águas de um riacho que se abre entre as árvores sob a luz cintilante de uma noite estrelada.
No fundo da sala, tapetes de crochê feitos por Conceição Alves Rodrigues são cuidadosamente dispostos pela artista, formando uma imensidão de cores que se projetam da parede, estabelecendo um diálogo íntimo com os cogumelos coloridos (5) que habitam a canoa. Um eco silencioso e invisível envolve toda a última sala.
O entrelaçamento das obras em todo o espaço articula um repertório de narrativas em um fluxo sensível e poético. Além de ser uma exposição, Todas as águas elabora em toda a sua potência um modus operandi muito característico do artista, que leva a experiência do compartilhamento para a materialidade das formas. A construção de cada nicho expositivo reverbera a multiplicidade de encontros ocorridos, as relações de confiança e afeto estabelecidas, criando novas histórias que se misturam às memórias do real vivido e/ou imaginado entre experiências que se dissolvem em um mesmo tempo.
︎ Registros : Débora Flor
Notas
1. Técnica alternativa de impressão fotográfica que combina sais de ferro e prata para obter uma superfície fotossensível, datada de 1895.
2. Esse é o nome dado à armadilha de pesca usada para capturar camarões de água doce. Normalmente feitas de madeira ou redes de pesca, com o advento das garrafas pet elas são reutilizadas para fazer matapis que, após imersão prolongada no rio, adquirem nova cor e textura.
3. A instalação que consiste no tapete, nos mapas e na paisagem sonora é chamada de O Mundo do Fundo de Jamaci, 2017 - 19 min. Participantes: Marcos, Marcio, Mirela, Miliele, Milene Rodrigues Baia; Marcio Baia da Costa, Ocimeia Souza Rodrigues; Aldileno y Acácio Modesto; Wildney Baia de Almeida; Mauro Baia da Costa ; Taiane, Mariane, Laiane Silva da Costa; Joventinho Ferreira Alves da Costa; Angelica Costa da Silva; Geisiane, Jailson, Janilson Martins da Silva; Paloma da Conceição dos Anjos Costa; Otavio, Paula, Miliele, Breno dos Anjos Costa, Luzia Ferreira Baia; Ronaldo Ferreira Alves da Costa; Elder Lucas Alves dos Anjos; Manuel Maria Machado da Costa; Alexandre Baia da Silva; Arlete Maria Gomes da Costa; Adailton Costa da Silva; Francinaldo, Edinaldo Ferreira Baia; Conceição Alves Rodrigues; Aldair José, Aldiney, Baia da Costa, Cosme Ferreira Alves da Costa; Rosilene, Nazaré, Roselia Ferreira da Baia; Jorge Adriano Oliveira dos Anjos; Aldilene Baia Costa, Éder Ribeiro Campos, Nilcilene, Wanize Duarte do Nascimento y Véronique Isabelle. Para escuchar el audio, visite:
https://soundcloud.com/user-586728868/templo?utm_source=mobi&utm_campaign=social_sharing
4. Vídeo sobre o processo de criação da canoa, ver: https://www.youtube.com/watch?v=b5AiGgw0oig
5. Os cogumelos, assim como os pedaços de brotos de cipó e galhos de miritizeiro exibidos em outras partes da exposição, foram cuidadosamente pintados pelas mãos das jovens Mileide e Milene Rodrigues, juntamente com Dona Ocineia Souza Rodrigues.