Alfabeto de ficções
exposição coletiva de grupo de artistas vinculados ao grupo de estudo Laboratório de Projetos da Associação Fotoativa, resultado de bolsa de pesquisa do projeto A Palavra é o limite, contemplado pelo Experimentação, Pesquisa e Difusão Artística 2016 - SEIVA. Fundação Cultural do Pará.
curadoria processual Camila Fialho
quando a casa torna-se o corpo de um livro-expandido
Há um ano passamos a nos encontrar quinzenalmente no Laboratório de Projetos - grupo de estudos do Núcleo de Pesquisa e Documentação da Fotoativa - para discutir sobre publicações independentes e a plataforma do livro enquanto espaço expositivo de fácil circulação, entrecruzando nossas experiências e pesquisas individuais criativas. Deslizamos por entre bibliotecas, por vezes babilônicas como a de Borges, transitamos por livros em diferentes formatos desenhando possibilidades para construção de uma publicação coletiva. Sorteamos letras para alavancar processos. Libertamos o alfabeto de sua função organizacional ou classificatória. Fomos atrás de outros sentidos. Abandonamos o livro bidimensional e nos lançamos na construção de um livro-expandido.
Alfabeto de ficções nasce do encontro desse grupo flutuante de pessoas e linguagens. Toma forma nesta volta ao Casarão da Fotoativa e propõe pensá-lo enquanto um grande livro aberto onde cada um de nós propõe a escrita de uma página a partir de seu próprio trabalho. A exposição traz estórias diversas que tomam como ponto de partida uma letra do alfabeto e reverberam de um ponto a outro da casa, se tocam, se distanciam, se contaminam, se nutrem.
No piso inferior da casa, os alicerces, suas fundações. Sobem pelas vigas construções poéticas que formam a base de um alfabeto-livro não linear. De uma página a outra, mundos paralelos convergentes por entre ficções tecem narrativas.
Sereia do Mar flutua pelo espaço em performance junto de uma caixa de lambe-lambe. O Batuque. De dentro para fora, de fora para dentro. O duo Causo e Companhia, Roberta Brandão e Jeff Moraes, contam-cantam a história de trabalhadoras do campo que há vinte anos formaram o primeiro grupo de carimbó só de mulheres, na região do salgado. A força feminina.
A mesa posta por Marcílio Costa nos convida à construção de um livro com suas memórias poéticas e imagéticas impressas em faces de carimbos coloridos. Kanji traz um pouco da casa e das águas do artista desde sua infância em Marabá. O berço reconstituído.
Dos homens para os homens, o urbano. Sitiada é a cidade que Irene Almeida traduz do medo imanente-crescente das urbes. A imagem em expansão. A grande cena nos tira de foco com as luzes deslizantes, o movimento de pessoas, o tumulto. Abre outra perspectiva da arquitetura. Na pequenez do formato, o imenso do vazio, a mudez do deslocar-se pela cidade à noite, soturna em cores fugidias. O retrato esmaecido, uma garota e seu crucifixo buscam proteção, a solidão.
No vão das ruas, o sujeito fragmentado. Três retratos em quebra-cabeças, figuram suposto feminino, gênero socialmente construído. Classificação, rotulação, modulação. No fundo dos quebra-cabeças, o reflexo daquele que olha para dentro. Lorena Costa subverte a condição de forma-dada. Oferece ao público a manipulação das peças. Sua face. Parte-se, rearranja-se na mesma faca de corte, mas nunca desenha o mesmo formato na confusão dos cabelos coloridos.
Réquiem para Bayard, de Martín Pérez, nos mergulha na história da fotografia que se atualizada na condição do artista contemporâneo. Por outro viés de leitura, evoca o ser refugiado, fronteiras negadas. O autorretrato de um afogado, do artista enquanto coisa, que mesmo imóvel pulsa no vai-e-vem das águas barrentas, no ziguezague do próprio viver-morrer de cada dia. Os desconhecidos territórios naufragados.
Ao fundo do salão, uma ambiência à parte para abrigar a dor que cada um sente. O que guarda o corpo-memória de nossos sismas de uma vida? Marise Maués trabalha seu corpo em carne e osso em barro entre o cuidado e a fissura da mulher que se despe sem vergonhas de suas feridas. Lança mão das palavras para fazer ecoar desde o público seus abalos sísmicos, suas fraturas. Desestabiliza.
No subir das escadas, o entrepiso. Ali a poesia toma conformação outra em preto e branco. O esboço da escrita imagética agencia, em páginas alinhavadas do próprio punho, uma sobreposição de tempos de uma Belém entre o ontem, o hoje e o amanhã, a decadência. Rodrigo José desenha caminhos do resistir em meios aos escombros, a chuva daqueles dias escorrem por uma memória perdida capturada através do olhar do artista perpassado pelos reflexos imprecisos das águas que nos rodeiam pela baía. O processo em aberto.
No piso superior, outras costuras do tempo desmaterializado, impalpável.
Desde as páginas do objeto-livro, O Afogado mais bonito do mundo, de Gabriel García Márquez, ganha corpo em leitura performática em ambiente instalativo-cênico deste universo mágico do mundo dos vivos que contempla um morto desconhecidode. Uma parceria de Anne Dias e Anibal Pacha. Processos de identificação reconstroem a vida alheia, transfiguram-na, reinventam-na. Resquícios do homem que foi. Velas conduzem em direção à luz de cor sépia o afogado Estevão.
No vazio da sala, as paredes ganham vida. Camadas e camadas de memória trabalhadas pelo tempo. Paula Giordano traz o Tempo do mundo sem tempo. A passagem do tempo-resistência imprime suas marcas no muro da casa, outra. Tempo cíclico, tempo de esmaecimento, renascimento. Palavras desenhadas ressoam pelo espaço em cuidadosa grafia. Irradia.
O tempo em suspenso para contemplar o céu. Uma escada para as nuvens. Flutua. Débora Flor delineia leituras possíveis de um céu apanhável com as mãos. Do mundo das nuvens desabrocham figuras imaginárias, todas que houver, em cianotipia. Nuvem-flor, nuvem-pássaro, nuvem-nuvem, nuvem-universo, nuvem-sonhos.
Encanto, desencanto, entremuros, a justiça: dos homens, dos deuses, fictícia. A projeção da forma, a forma, o objeto. Num jogo de luz e sombra, dança a equilibrista – entre a justiça e o julgamento de José Viana. Um frágil equilíbrio-desequilíbrio de peças suspensas no ar projetam-se nas paredes. No metal vibram histórias do ontem em achados de um caminho da impunidade, com o suporte ouro das verdades. Justiça de quem para quem?
Entremundos, o tênue limiar entre a liberdade e a loucura configura-se na imagem da nudez de Pantera, ignorada em meio à multidão. Cinthya Marques traz o silêncio que ainda vai nos sufocar. Esconde, revela. Mãos na areia. O vidro espelha a nudez calada. Sobre o que ninguém fala, sobre o que ninguém quer ver. Cores partidas.
Antônia Muniz precipita-se num corpo a corpo com pedras percorridas pelo caminho. Ela pedra-corpo. A pedra indica o caminho. O encontro do corpo da pedra na carne do caminho em ressonâncias de si em um só elemento. Autorretratos de um outro, ela corpo-pedra. Isto não é um mapa, mas traça descaminhos de uma vida que também já foi pedra.
Em um rito sensível-intuitivo, Evna Moura oferta seu Ori aos deuses-forças dos quatro elementos. Entrega-se a descoberta de si. Pede benção a seus Orixás-guias. Em sequiencias de imagens do processo, conduz nosso olhar junto dopercurso que marca seu nascimento nesse novo mundo de cores e sensibilidades na passagem do encontro entre os mundos terreno e espiritual.
A M - entidade feminina é tramada por Cynthia Cárdenas a várias mãos. Traz à tona a construção do feminino desde muitas vozes que falam unissonantes. Movimentos que sobem montanhas, descem por caminhos curvos em direção ao rio movente. Caixas, desenhos, palavras, linhas amargas, uma máscara, muitos círculos. No espaço, íntimos se entrelaçam em afetos. Papéis disponíveis para escrita abrem conversas outras que continuam a reverberar na construção desta M Mulher, múltiplas.
O nada de Malu Teodoro desenha-se no branco sobre o branco bordado delicado, por Cárdenas e Flor. Nos véus da passagem, também isto passará. Sobre a impermanência das coisas e dos seres. Esvoaça-se nas paragens do sopro do vento, sutil. Presente, ausente – constante no que pode haver de mais fugaz na diluição dos tempos que aqui passamos.
O quarto. De frente para a janela, um convite à Viagem de Mayara La-Rocque. Mergulhar em si. Sobre a mesa que a acompanha de longa data, tempos e sentires se entrecruzam através da escrita. Recortes e tessituras de pulsões poéticas. Desde a janela, assiste o mundo do lado de dentro. Fecha-se em si. Um livro. Respira. Reflete, refrata-se. Abre-se às novas leituras.
No último recanto, imergimos no encanto das águas do grande-rio. Universo paralelo co-movente. Paisagens sonoras preenchem o ambiente intimista iluminado por reflexos que brincam em bacia d’água. A experiência da Flor d’água entre o mundo da superfície e o fundo - de nós mesmos e das coisas - entrelaça antropologia e arte através da proposta de Véronique Isabelle. O cheiro do molhado, madeira, escamas de peixe, brilho salgado, gosto de infância, alimento de nossas risadas.
No caminho de volta da escada, nas costas de quem sai, o cemitério que fica. O silêncio das vigas ecoam a partir de uma fotografia apropriada e viajada, trazida pelo amigo Guy.
Para o percorrer do processo que se segue ao longo dos dias, as palavras brincantes de Adriele Silva da Silva. Trocas que suscitam o reencantar dos jogos de/com palavras despertando nossos seres-crianças, construindo outros caminhos através das obras do grande-livro-expandido, de um ponto a outro da casa.
por Camila Fialho
Belém, 1º de setembro de 2016.
artistas: Adriele Silva da Silva, Anne Dias + Anibal Pacha, Antônia Muniz, Cinthya Marques, Cynthia Cárdenas, Débora Flor, Evna Moura, Irene Almeida, José Viana, Lorena Costa, Malu Teodoro, Marcílio Costa, Marise Maués, Martín Pérez, Mayara La-Rocque, Paula Giordano, Roberta Brandão + Jeff Moraes, Rodrigo José e Véronique Isabelle, com curadoria de Camila Fialho.