Desde que o mundo é mundo
_ exposição de Débora Flor, 2025.
_ Kamara Kó Galeria, Belém/PA
_ curadoria processual, Camila Fialho
_ fotos: Débora Flor

Desde que o mundo é mundo
por Camila FialhoDesde que o mundo é mundo, águas imensas nos conduzem na travessia da chegada. Nesta primeira exposição individual de Débora Flor, somos convidados a mergulhar nessas águas e revisitar sensações e emoções despertadas pela experiência de vir ao mundo. Por meio de uma trama imagética e sensorial, a artista entrelaça texturas e faturas visuais — bordados, plantas, histórias e objetos — em um jogo temporal que oscila entre passado e presente. Acessamos assim o sensível de uma vivência individual que transborda para o coletivo e nos envolve.
A primeira sala nos recebe com Cascade, um recorte de paisagem reconstruído pelo preto e branco das memórias capturadas pela fotógrafa. As águas gélidas do Norte encontram a atmosfera úmida e quente de sua terra natal, enquanto o verde do jardim cultivado por Makiko Akao recria o frescor dos ares da floresta boreal. De frente para a grande imagem, na parede oposta, a artista — em transformação — olha para nós, serena e confiante. Através da perspectiva de Véronique Isabelle, seu olhar penetrante nos acolhe. Ao lado, brotos de samambaias, fougères grávidas de folhas e esporos.


Na passagem para a segunda sala, um círculo de fogo esculpido nas pedras pelo tempo anuncia os caminhos ancestrais da chegada. As inscrições rupestres de Monte Alegre nos reconduzem à Amazônia, introduzindo uma nova paleta de cores e texturas. Os pigmentos vermelho-urucum carregam vestígios de sangue de uma temporalidade distante, moldando sobre o amarelo-ocre das rochas figuras que nos ligam a antepassados envoltos no mistério eterno de Kukukaya. Junto a eles, a barriga crescente de Dandara nos traz de volta ao presente. Envolta pelo mangue, no arranjo expositivo, a menina-mãe dialoga com o tempo e um corpo-raiz. Vela pela criança que um dia foi, pela que está por vir e pelo pequeno pedaço de seu coração que agora caminha — Gabriely. As mãos de Dona Áurea iluminam a travessia, oferecendo aconchego e sabedoria.


Nanan e Família-mangue materializam o entrelaçamento de raízes e deslocamentos múltiplos: o encontro do grande Norte com a imensidão do grande Sul. Sob o olhar sensível e cúmplice de Émilie Beaulieu-Guérette e a proteção das árvores da floresta boreal, o ritual de enterro da placenta devolve à terra a extensão do umbigo. As mãos de Véronique escavam um continente em celebração à vida.


Dar a luz, com todo amor e esmero, a grande dádiva — de mãe para filha. Bordados em vermelho, fragmentos de uma longa narrativa. Cada imagem abre uma janela, um novo mundo. Entre Brasil e Canadá, agora um só corpo movente — ora casa, ora cama, ora abrigo. Para Nanan, por toda a vida — à toi, pour la vie. Junto aos pequenos pés que avançam em direção ao futuro, é tempo de honrar os passos daquelas que vieram antes. Revisitamos o tempo na imagem-memória de Vó Paula e de suas plantas do parto – alecrim, erva cidreira, flor de algodão e espada de São Jorge. O bordado de Rosangela Cordeiro resgata a materialidade do que se perdeu, tornando presente a ausência em gestos não esquecidos. Na figura da avó, ecoa a força feminina; na sabedoria das parteiras, as vozes de Andréa Catalá e Dona Áurea, que ressoam desde o jardim outrora cultivado por M. Magdalena B. Conceição, parteira-diplomada. Com elas, toda uma ancestralidade — uma multidão de mulheres que, desde que o mundo é mundo, guiam os ritos de passagem, ritos de vida, morte e vida.

Na passagem final, entre a entrada e a saída, o altar e as imagens-lembranças de uma longa travessia. A intimidade silenciosa das orações por um novo dia. Divindades de barro, Nanan em grafismos marajoaras — traços de uma releitura intuitiva. Plantas de proteção e presenças essenciais para rituais de cura. O fazer do dia a dia. Ciclos de chegada e partida.
Belém, 31 de maio de 2025.